O crescente domínio das novas tecnologias no tratamento da diabetes
Quinta-feira, 09 Março 23 10:05

Dr. César Esteves
Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo
O crescente domínio das novas tecnologias no tratamento da diabetes
Quinta-feira, 09 Março 23 10:05
O papel das novas tecnologias no tratamento e acompanhamento das pessoas com diabetes é o tema a que o Dr. César Esteves, especialista em Endocrinologia do Hospital da Prelada, dá resposta num artigo de opinião. Leia a peça.
A evolução exponencial no domínio das tecnologias digitais facilmente pode deixar assoberbado o cidadão comum. Se evocarmos as nossas memórias do início do século XXI, quase nos esquecemos que, na altura, (sobre)vivíamos sem smartphone, videoconferência ou plataformas de streaming. Por seu turno, os computadores portáteis não tinham touch, pesavam o dobro do peso e a autonomia da bateria era uma fração da atual. Para os mais céticos, a tecnologia que existia já executava todas as funcionalidades de que precisavam mas, em 2023, poucas são as pessoas com o mínimo de literacia digital que não usam regularmente algum tipo de rede social, ou que não usam alguma plataforma de streaming.
Serve este parágrafo introdutório para dizer que, há 20 anos, a maior parte das pessoas com diabetes mellitus estava relativamente conformada com o uso de glucómetros, ou com a administração de insulinas cuja farmacocinética deixava algo a desejar. Mas o século XXI surpreendeu-nos e, assim como o lançamento do iPhone em 2007 constituiu um tremor de terra no mercado das comunicações, o lançamento da monitorização flash em 2014 desencadeou eventos que culminaram na massificação acelerada das tecnologias digitais no tratamento da diabetes, qual borboleta a bater as suas asas. Os dispositivos já existiam previamente, mas não estavam devidamente aprimorados para o uso em massa, face à relação custo-benefício até esse momento.
Este evento não só incentivou os sistemas de saúde a acomodar a uso da monitorização contínua da glicose intersticial em substituição da vigilância da glicemia capilar, como incentivou os fabricantes de rtCGM a melhorar rapidamente os seus produtos, assim como o surgimento de novos fabricantes. É este processo que possibilitou o lançamento de sistemas híbridos de ansa fechada, com claros benefícios face ao uso de múltiplas injeções de insulina, particularmente em indivíduos que não estão a atingir os seus objetivos glicémicos. A massificação dos sensores também potenciou o surgimento do movimento DIY e o envolvimento crescente da comunidade de pessoas com diabetes e seus familiares no desenvolvimento de soluções que melhorem a sua qualidade de vida.
Porém, o desenvolvimento ultrarrápido de tecnologias inovadoras choca de frente com o funcionamento de um setor fortemente regulado como é o caso da saúde. Levantam-se questões éticas e legais quando um novo algoritmo, desenvolvido informalmente pela comunidade de pessoas com diabetes, apresenta mais funcionalidades e potencialmente melhores resultados que os sistemas comercialmente disponíveis. A resultante pressão comunitária para o seu uso é incompatível com as exigências das instituições de regulamentação, desenhadas para garantir a segurança do público, mesmo que a custo de um lag na disponibilização da inovação. Mas a descentralização do desenvolvimento de software, dentro das possibilidades abertas pelos fabricantes de hardware e sistemas operativos, é uma das causas do sucesso da área das Tecnologias de Informação e Comunicação, que acelerou o desenvolvimento de novas funcionalidades ao longo das últimas décadas. Serão necessárias alterações da regulamentação que permitam o desenvolvimento paralelo de novas formas de otimizar e personalizar o funcionamento dos dispositivos disponíveis, de forma segura e apropriadamente monitorizada?
Neste contexto desafiante cabe aos profissionais de saúde acompanhar as mudanças e eventualmente contribuir para a avaliação dos sistemas, através do envolvimento de centros de investigação, universidades e sociedades científicas. Apesar da progressiva automatização na gestão da diabetes, os vários profissionais de saúde continuarão a ter um papel no seguimento das pessoas com diabetes, certamente com características diferentes dos papéis na atualidade mas, na sua essência, com a mesma natureza humanista que sempre caracterizou o setor da saúde.