Intolerância às estatinas: impacto clínico e soluções terapêuticas hipolipemiantes
Sexta-feira, 29 Novembro 24 09:48
Cardiologia
,Medicina Interna
Intolerância às estatinas: impacto clínico e soluções terapêuticas hipolipemiantes
Sexta-feira, 29 Novembro 24 09:48
“Centralizar conhecimento, promover o futuro” foi o lema do XXXII Congresso Português de Aterosclerose, que se realizou nos dias 25 e 26 de outubro, em Alcobaça. Este acolheu o simpósio patrocinado pela Daiichi Sankyo, intitulado “Intolerância às estatinas em Portugal: resultado do estudo PORTRAIT-DYS”, que teve como intervenientes Francisco Araújo, coordenador do Departamento de Medicina Interna no Hospital Lusíadas de Lisboa, e Cristina Gavina, diretora do Serviço de Cardiologia da ULS de Matosinhos. Os dois especialistas abordaram a intolerância às estatinas e o papel das terapêuticas hipolipemiantes alternativas em doentes intolerantes e/ou de risco cardiovascular alto e muito alto.
Desafios no diagnóstico e tratamento dos doentes intolerantes às estatinas
A intolerância às estatinas é uma condição frequentemente relatada na prática clínica, mas que exige critérios rigorosos para um correto diagnóstico. Numa breve introdução à intervenção de Cristina Gavina, Francisco Araújo salientou que, embora estudos indiquem que até 30 % dos doentes possam relatar mialgias atribuídas às estatinas, a prevalência real é significativamente inferior, situando-se entre 5,9 % e 9,1 %, dependendo dos critérios aplicados. “A prevalência destes sintomas varia completamente, por um lado, consoante a definição que temos de intolerância, por outro lado, consoante o tipo de queixas que nós procurámos”, afirma o palestrante. Neste sentido, “a definição tem de ser muito rigorosa”, sendo igualmente importante avaliar causas secundárias de intolerância como défice de vitamina D, hipotiroidismo ou o efeito placebo.1-3 O palestrante fez ainda referência às alternativas terapêuticas disponíveis para os doentes efetivamente intolerantes, nomeadamente, a ezetimiba, o ácido bempedoico e os inibidores da PCSK9, utilizados de forma isolada ou em associação.4,5
Estudo PORTRAIT-DYS – Um panorama nacional da intolerância às estatinas
Cristina Gavina é a principal investigadora do estudo PORTRAIT-DYS, um estudo realizado em Portugal que pretende fazer uma caracterização do controlo do c-LDL nas categorias de maior risco cardiovascular utilizando, para o efeito, informação clínica dos último 20 anos, incluindo aproximadamente 51 mil doentes de alto e muito alto risco. Os dados populacionais obtidos revelaram que 15 % dos doentes com doença aterosclerótica estabelecida não recebem qualquer terapêutica hipolipemiante, mesmo apresentando elevado risco cardiovascular. Este número reflete lacunas significativas na prática clínica. Como observou a palestrante, “há efetivamente uma tentativa de fazer alguma coisa quando […] é diagnosticada a doença aterosclerótica, há uma tendência para mudar, é indiscutível”, verificando-se um aumento da utilização da terapêutica. No entanto, acrescenta que “faz-se alguma coisa, mas provavelmente ainda se faz muito pouco”.6 A análise revelou também que as mulheres têm uma menor probabilidade de atingir os valores-alvo de c-LDL comparativamente aos homens, mesmo após ajustes em relação à idade e ao risco. “As mulheres têm uma probabilidade 22 % menor de serem […] adequadamente controladas”, enfatiza Cristina Gavina, um dado que exige atenção na prática clínica.7
Com o objetivo de avaliar a intolerância às estatinas na população portuguesa, foi feita uma subanálise do estudo PORTRAIT-DYS, utilizando os mesmos critérios de inclusão do último ensaio clínico realizado na área, o CLEAR Outcomes. Foram considerados intolerantes às estatinas os doentes que já tivessem tomado duas ou mais estatinas em qualquer dose e tivessem descontinuado, ou doentes que, tendo feito apenas uma estatina, recusassem tentar uma segunda estatina ou tivessem sido aconselhados pelo médico a não tentar. Os dados obtidos revelaram que das 11.700 pessoas elegíveis para o estudo, “uma percentagem de 10,5 % foi considerada como sendo intolerante”, afirma a especialista. Por outro lado, verifica-se que grande parte das intolerâncias são reportadas nos Cuidados de Saúde Primários, onde frequentemente faltam opções terapêuticas avançadas. “Muitas vezes estas pessoas não vão ter acesso a muitas das terapêuticas que lhe podem abrir portas ao melhor controle do LDL”, lembra Cristina Gavina. Esta situação reforça a importância de melhorar a comunicação entre cuidados de saúde primários e hospitalares sendo que “há aqui, também, uma margem de podermos tentar melhorar, provavelmente, a nossa própria comunicação com os doentes e a forma como estamos a abordar esta problemática”.7
Ácido bempedoico – o futuro das terapêuticas hipolipemiantes
A intolerância às estatinas continua a ser um desafio da prática clínica, contudo, não deve ser considerada uma barreira intransponível, e diversas estratégias terapêuticas podem ser implementadas. “É que, efetivamente, começamos a ter cada vez mais outras opções terapêuticas para os que são intolerantes e não só. E, quando eu falo disto, estamos a falar, obviamente, do ácido bempedoico”, destacou a palestrante, acrescentando que esta molécula “tem uma diferença muito importante relativamente às estatinas, pelo facto de não ter a interação com o músculo esquelético, não causar, à partida, mialgias”.8 Estudos demonstram ainda que a utilização deste fármaco associado a uma estatina permite uma redução de c-LDL em cerca de 18 % e, se forem considerados os doentes intolerantes, a redução de c-LDL observada é de 25 %.9 Cristina Gavina salienta também que, alguns ensaios clínicos revelaram que “quando associamos [o ácido bempedoico] à ezetimiba, conseguimos ganhos extra. E esses ganhos extra podem ser reduções que podem chegar quase aos 40 %” e que em doentes com terapêutica combinada, de atorvastatina, ezetimiba e ácido bempedoico, “se conseguem reduções que podem chegar quase até aos 60 %, num perfil que é muito semelhante às terapêuticas de estatinas de alta intensidade em combinação com ezetimiba”.10,11
Ensaios clínicos recentes, como o ensaio CLEAR Outcomes, reforçam o benefício do ácido bempedoico. Este fármaco, que demonstrou reduzir o c-LDL de forma significativa, tem também a capacidade, assim como as estatinas, de reduzir os níveis da proteína C reativa “e isso é, efetivamente, uma das coisas que também queríamos encontrar”, afirma a especialista, uma vez que o controlo da inflamação é crucial na prevenção cardiovascular. Outro fator relevante é o papel deste fármaco na redução em cerca de 13 % de eventos cardiovasculares major, como morte cardiovascular, enfarte do miocárdio e AVC, que como destaca a palestrante “é extremamente importante para os doentes com doença coronária” uma vez que vai diminuir a revascularização e, consequentemente, o número de enfartes”.12
O impacto do ácido bempedoico em populações específicas
O impacto do ácido bempedoico em subgrupos específicos também foi amplamente discutido. O estudo CLEAR Outcomes foi o primeiro ensaio clínico a incluir uma representação significativa de mulheres (48 %), fator importante dada a intolerância às estatinas nesta população, demonstrando eficácia clínica e segurança entre géneros. “Não há interação entre ser homem ou mulher, vai ter o mesmo efeito, a mesma eficácia, o mesmo benefício independentemente do sexo, com uma tolerabilidade que é semelhante”, concluiu Cristina Gavina.12,13
No que diz respeito aos doentes diabéticos ou com risco glicémico aumentado, o ácido bempedoico demonstrou eficácia sem comprometer o perfil glicémico, um dado tranquilizador para a prática clínica. “Independentemente do nível da glicémia, temos efetivamente aqui eficácia comprovada, sem nenhuma interação com aquilo que são os níveis da glicémia”, reforçou a especialista. Assim a sua utilização não está associada a um aumento significativo no risco de novos casos de diabetes.13
Relativamente aos doentes com síndromes coronárias crónicas, as guidelines atuais recomendam a utilização de ácido bempedoico, “não só naqueles que são os doentes intolerantes, onde, claramente, aqui a indicação é uma classe 1”, mas também como parte da terapêutica combinada tripla, na associação com a estatina na máxima dose tolerada e com ezetimiba, “sempre tendo em linha de conta que estamos a falar de pessoas que precisam de uma prevenção que é completamente diferente daquela que seria a prevenção sem doença arteriosclerótica estabelecida, e onde, claramente, nós estamos ainda a falhar largamente nos nossos objetivos”, concluiu Cristina Gavina.14
Na conclusão da sessão, saem reforçadas as mensagens que a intolerância às estatinas continua a ser um desafio, mas novas abordagens terapêuticas oferecem soluções eficazes. O ácido bempedoico, juntamente com a ezetimiba, posiciona-se como uma alternativa valiosa para otimizar a prevenção cardiovascular em doentes que não toleram terapêuticas convencionais.
Saiba mais sobre o estudo aqui.